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Mais um texto escrito pela Ca, autora de "Pelo Que Você Morreria?". Conheçam a vida desta verdadeira bacante e aprendam com seus erros e acertos.



Depois de angustiantes 15 dias de espera, o diagnóstico chegou. Gostaria de dizer que ele veio em um envelope para o qual olhei durante muitos minutos, hesitando antes de abri-lo, saboreando o direito de, afinal, joga-lo na lixeira ainda lacrado e jamais ler diagnóstico algum. Os tempos pós-modernos, porém, tiram todo o charme noir que as revelações de papel davam às nossas vidas: foram-se os envelopes e os bilhetes pregados na geladeira, agora é tudo por e-mail e SMS. Mais eficiente, menos divertido. Enfim: o laboratório mandou um simpatico e-mail agradecendo a preferência. Anexado, o diagnóstico totalmente indiferente a si mesmo, e a palavrinha filha da puta ali em negrito, desavisada dos perigos do mundo: positivo.

Fiquei uns cinco dias paralisada. O Motor Automático da Existência assumiu o comando, comendo, conversando, e até saindo para comprar roupas com a mamãe. Dentro de mim, porém, eu me assemelhava muito a um filme de Faroeste, uma cidade abandonada onde o único vestígio de presença humana é a placa anunciando o Saloon. Mas a minha placa era muito mais soturna, ficava ali estampada como um mantra permanente, dizendo que eu ia morrer. Câncer, ela dizia: mais dia, menos dia, ele vai abrir as portas, atravessar o Saloon empoeirado, tocar uma música no velho piano e me levar embora. Durante esses cinco dias, fiquei esperando que alguma coisa acontecesse: uma cólica, um enjôo, qualquer sinal de que a doença estava ali. Todavia, a única coisa que me envolvia era um extenso e intransigente mutismo.

Lá pelo sexto dia a ficha caiu: por mais que o HPV do tipo 2 esteja relacionado a impressionantes 80% dos casos de câncer de colo de útero, eu não ia ter (não vou ter) câncer assim, de um dia para o outro. Nem vou me curar, de um dia para o outro: não adianta lamentar, parar de beber, virar celibatária nem conversar com Jesus – aquele camarada maneiro que volta e meia transforma galões de água em vinho, gente finíssima – a evolução do vírus não depende de mim em nenhuma instância. Martirizar-me, com direito a chicotadas (hum, delícia!), correr para o abraço da monogamia e do casamento... enfim: fugir da minha vida afetivo-sexual libertária não é a solução. Com isso em mente, coloquei em curso algumas reflexões.

Muito antes de saber ou desconfiar do tal do HPV minha vida de libertinagem já tinha dado todos os frutos que eu gostaria de colher dela. Ela me deixou doente, é verdade, mas em diversos momentos eu experimentei sensações e aventuras (sim!) que povoam a imaginação de muita gente – e serão contadas aqui, ao seu devido tempo – e que um bocado ainda maior de pessoas sequer consegue imaginar. Quando você se propõe a uma vida realmente libertária é como cair pela toca de coelho da Alice e descobrir todo um mundo bem diferente desse que encontramos estampado nos rostos das pessoas entre seis da manhã e dez da noite. Você entra num universo que, como uma esfinge, causa horror, espanto, calafrios, suores, gemidos... E por mais que eu me proponha a contar tudo, tudinho, sempre vai ser algo bem diferente de estar lá para ver. E eu sou o tipo de pessoa que está.

Como já disse, fui entrando no vórtice das minhas fantasias – e das fantasias alheias – vagarosamente... Embora mais tarde eu tenha perdido a bússola, no início eu sabia muito bem o que eu queria com tudo aquilo: eu queria me libertar. Nunca tive a chave do meu quarto até os 21 anos, quando decidi que eu tinha esse direito: fui até a caixa de ferramentas do papai e, sozinha, munida de uma maleta cheia de coisas que eu não sabia usar, instalei na minha porta novas maçaneta e fechadura. O que para mim fora uma operação bastante simples, até um pouco singela, gerou aqui em casa o maior pandemônio que a família já tinha vivido. Num raio de cinco gerações, todos ouviram falar daquele absurdo, que deixou algo bem claro: a ausência de chaves no meu quarto não era casual.

Pra piorar as coisas, minha melhor amiga se enveredou pelos caminhos acadêmicos do feminismo e da teoria queer, e passava suas descobertas teóricas para mim em primeira mão. A teoria se casava com a prática da minha vida: ali estava eu, mulher (segundo a nossa cultura...), violentada simbolicamente e privada de meu próprio corpo. Comecei a pensar no quão ilusória e precária é a nossa liberdade: tudo nos é permitido às escuras, entre quatro paredes. O sexo é varrido para baixo dos castos tapetes da moral e das aparências, enquanto cada um de nós, em seus computadores e quartos de motel, CADA UM DE NÓS venera sua própria perversão. Todas as formas de prazer que nos são permitidas, mesmo essas aprovadas pelo conselho sócio-cultural “daquilo que é certo”, são inspecionadas, medidas e reguladas, para que nunca nos divirtamos de menos ou nunca nos divertamos demais. Os limites do aceitável, dentro dos quais somos obrigados a passear, são claros quando nos dispomos a lhes dar atenção. E eu decidi que ia pegar o que era meu: ia pegar meu corpo e minha vida, mandar o limite para o caralho (e quantos caralhos!), como essas crianças que colocam fogo em um monte de jornal “só para ver o que acontece”, ou como Johny Cash naquela música, que atira num homem “just to watch him die”.

(continua em “minha primeira suruba”)

Comentários

  1. "Cada um venera sua própria perversão..." genial, hein! Aguardo ansiosamente sua primeira suruba!

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  2. Sou completamente apaixonado pelos seus textos, Ca! E tá sendo mt bom poder publicá-los aqui no blog. Me deixa realmente orgulhoso. E conhecer sua história vai ser ótimo, tenho certeza.

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  3. aproveita bem a vida enquanto és novo will diverte-te

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  4. "quão ilusória e precária é a nossa liberdade"

    Essa frase tá ecoando na minha cabeça até agora...foda!

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  5. Belo texto...

    Ansioso pela continuaçao...

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